Um destes dias ia de táxi para um daqueles serviços de agenda que já não recordo bem. Era Verão, final de tarde e o sol queimava o horizonte com as cores mais quentes que possas imaginar. Estava distraído a observar a paisagem que deixava um borrão na janela do carro, absorto nos pensamentos que vagueavam entre o que ia vendo pelo caminho, sem se fixarem mais do que breves segundos no que via.
De repente, o rádio começou a tocar uns acordes familiares, que me despertaram bruscamente, apesar da suavidade da melodia. Era aquela música que uma vez te dediquei, confesso que não sei bem em que ocasião, a mesma que, confessaste-me com a voz embargada, era a música dos teus pais. A partir daquele momento, aquela guitarrada suave passou a ser também a nossa música. Uma das nossas músicas.
Fechei os olhos e deixei-me embalar pela nostalgia que inesperadamente me abraçou no banco de trás daquele taxi, que continuava a percorrer as ruas da cidade, empenhado na sua missão de me levar ao meu destino, enquanto o mundo lá fora seguia na sua rotina, indiferente àquele momento único de que o universo era a única testemunha.
Não demorou muito a que tivesse entrado naquele limbo que apenas a nostalgia consegue despertar em nós e para onde só ela sabe transportar-nos, o mesmo em que a saudade nos faz mergulhar no subconsciente para ir buscar as memórias que nem sabíamos ainda guardar. Nessa altura já tu me tinhas abandonado e eu deixei-me simplesmente levar pela música.
E tudo voltou, assim, de repente. Os momentos que passámos juntos, os sorrisos que trocámos, as gargalhadas soltas ao vento, os olhares cúmplices de uma paixão que timidamente sentíamos a crescer sem conseguir identificá-la, o toque suave dos nossos dedos entrelaçados uns nos outros enquanto nos agarrávamos àqueles preciosos momentos, sem pensar sequer no que ainda estaria por vir.
Não fui o único, no entanto, a quem a nostalgia tocou ao som da música. Talvez inspirado por aqueles acordes com que Deus nos abençoou através dos ágeis dedos do Carlos Santana, o taxista decidiu desabafar os seus desamores comigo. Ou talvez só quisesse alguém com quem falar.
Enquanto percorríamos velozmente o asfalto, contou-me todas as suas mágoas, as aventuras e desventuras amorosas que tinha passado com a sua mulher de mais de 30 anos de casamento, mais sete de namoro. Dizia-me que não a suportava, que ela lhe moía o juízo todos os dias mas, ao mesmo tempo, não sabia viver sem ela. Era ela a mulher da vida dele e por quem saía todos os dias de casa ainda antes de o sol nascer em direcção àquela praça de táxis, na 5 de Outubro, que lhe consumia o espírito, à procura de poder dar à sua mais que tudo tudo o que desejasse.
Dissertou sobre os signos, de como ele era Touro e ela era Sagitário, e de como, ainda assim, eram unha com carne. Pelo meio falámos um bocadinho sobre arquitectura, de como o edifício da PT, já perto das Avenidas Novas, nunca passava de moda e eu anuí, embora o achasse um horrível mamarracho. Voltámos à mulher dele.
“É dia sim, dia não. Depois é dia sim, dia sim. Querem controlar tudo e mais alguma coisa. Sagitário é um espírito livre… Eu adoro viajar, conhecer o mundo. Você não?”, perguntou-me, sem esperar resposta. “Gosto”, respondi-lhe ainda assim. Quem não gosta? Escrevo-te estas palavras, aliás, a bordo do voo que me vai levar a Paris, a cidade onde sempre quis levar-te, não tivesses interrompido, se não o nosso, pelo menos, o meu sonho.
Continuámos a nossa conversa. Ou o monólogo dele, convicto de que o que aquilo era um diálogo… Futebol, era o que faltava. Qual é o taxista que não fala sobre futebol? Todos temos dentro de nós o seu quinhão de treinador de bancada, mas um taxista é claramente doutorado na matéria.
“Sabe como é que se chama o meu blutu? (assim mesmo, não há cá inglês que valha a um taxista que, confessou-me, sem vergonha, como se isso fosse motivo, não tinha mais do que a quarta classe)… Eusébio!”
“Eu não sou… não sou benfiquista”, tentei responder-lhe, à espera das clássicas duas perguntas que me fazem sempre que discutimos futebol na capital. “É sportinguista?” Também não. “Portista?” Também não. “Sou de Coimbra…” “Académica!”, exclamou assim que ouviu o nome da nossa mágica cidade, sem me deixar terminar a frase. “Claro”, limitei-me a responder.
Continuou a divagar e eu limitei-me a ouvir, com um sorriso. A música já tinha terminado havia algum tempo, mas o taxista parecia alheio ao que o rodeava. Tenho pena de não ter fixado o nome ou o número do carro dele.
“Aceitei ser praça em Coimbra. Sou da Covilhã e quando fui tropa foi lá que fiz a recruta… em Santa Clara. De lá vim para a capital e depois fui para África, Angola… Mas gostei, gostei da experiência”. Aqui começámos a divagar, enquanto a locutora nos dava conta das notícias daquele final de tarde.
“Fui para lá em 1972 e, olhe, faz amanhã… Não, amanhã ainda estava em Angola. Faz no dia 1 de Maio 40 anos que cá cheguei… Voltámos cinco dias depois do 25 de Abril e não se notou nada, tanto que o embarque até atrasou por causa do que se tinha passado e não foi nada de especial. Só quando cá chegámos… Do aeroporto até à Calçada da Ajuda era um mar de gente que gritava ‘Vitória! Vitória!’ e nós só nos perguntávamos mas que vitória? Só depois de começarem a falar é que nos apercebemos da viragem…”
Um momento de silêncio, o mais longo de toda a viagem, em que apenas se ouvia a música que saía do sistema de som gasto do táxi. Prosseguimos o nosso caminho, continuo sem saber para onde fui nessa tarde, mas está a saber-me bem recordar esta conversa.
“É aquele hotel grande ao pé da Antral, não é? É”. Gosto muito da maneira como os taxistas fazem as perguntas e respondem logo de seguida, sem esperar réplica. “Estou a falar daquele centro comercial… o Olaias Plaza”, corrigi-o. “Ah, pois é, tem razão. Então, é a mesma coisa… O hotel é… tem razão, tem razão”.
Não sei que música foi que passou a seguir, mas o momento já tinha morrido. Concentrámo-nos apenas em seguir viagem e chegar ao destino o mais rapidamente possível. De repente, voltámos a ser dois estranhos naquele táxi. “O outro é o Altis Park…”, ainda retorquiu.
Cheguei. Saí do táxi, agradeci ao taxista por aquele momento – não sei ao certo quanto tempo passou desde que entrei no táxi até ter chegado ao meu destino -, mas senti que o seu propósito tinha sido cumprido: levar-me, mais do que ao sítio onde tinha de ir fazer reportagem, onde eu precisava de chegar.