um ano sem o sacana
não tenho grande memória do dia um de junho de dois mil e vinte. não porque foi um dia mal fadado, porque foi, mas porque não me lembro mesmo de muito do que aconteceu.
o meu avô estava internado no curry cabral há uns dias, a esperar a transferência para o são josé, para realizar um exame que teimosamente não queria fazer e só aceitou fazer depois de dias a pedir-lhe que fosse fazer.
não sei bem que horas eram quando a minha mãe me ligou a pedir que fosse ao hospital, porque a médica lhe tinha ligado a pedir que a família lá fosse. pouco depois voltou a ligar a dizer que devia ser grave, porque, pela voz da médica, parecia ser algo sério.
sei apenas que eram quatro e seis da tarde quando cheguei ao hospital porque é essa a hora que está impressa no ticket. mal sabia que, a essa hora, já o meu avô não estava entre nós.
não sei quanto tempo demorou até ser chamado pela médica. sentei-me, com a distância necessária entre mim e a secretária da médica, e a única coisa que me lembro dessa conversa são as seguintes palavras:
joão, lamento dizer-lhe que o seu avô faleceu esta manhã. estava a caminho do hospital são josé para fazer o exame quando … os médicos ainda tentaram reanimá-lo, mas sem sucesso.
estive com o seu avô ontem, estava sentado na sua poltrona, reconheceu-me e estava em paz.
mas a conversa prosseguiu, não me lembro de mais nada. aquelas reticências ali no meio não são engano. são mesmo falhas, brancas, pedaços da conversa que o meu cérebro não registou.
não sei quanto tempo estive à conversa com a médica. no histórico de mensagens que a joana me mandou, enquanto esperava por mim, meia hora volvida ainda lá estava dentro.
sei agora que entrei em choque quando me foi dada novidade. limitei-me a absorver a informação, sem conseguir processá-la ou registá-la. não chorei, não consegui chorar, porque não estava a compreender bem aquilo que a médica estava a dizer-me. o meu avô não podia ter morrido.
quando finalmente cheguei cá fora, não sei quanto tempo depois, a joana veio na minha direcção e, no seu abraço, finalmente chorei.
fui num instante buscar os pertences do meu avô. seguimos viagem em direcção à comporta, a joana a levar o carro, para ir buscar o meu irmão e trazê-lo para a casa que era agora da minha avó.
chegámos ao final da noite, acho que já era perto da meia-noite. tínhamos passado a tarde toda em viagem.
a primeira coisa que fiz foi abraçar a minha avó e senti-la a desfazer-se nos meus braços, a chorar. fomos nós que tínhamos levado o meu avô, o meu sacana, a fazer a viagem entre tomar e lisboa e tomar outra vez para ele fazer os exames que tão casmurramente não queria fazer.
cheguei a tempo de murmurar à minha tia, minha companheira de tinto nos jantares de natal, um triste “parabéns”, porque ela fazia anos nesse dia um de junho. o dia de aniversário dela nunca mais vai ser o mesmo.
e deu também para desejar parabéns à joana, depois da meia-noite, já no dia dois. foram uns parabéns tristes e desapontados, porque não era, certamente, aquilo que ela desejaria nem era de todo aquilo que eu tinha imaginado para aquele dia. ela que me segurou nesse dia e nos seguintes, não deixou que eu fosse engolido pelo chão que desapareceu de debaixo de mim, para nunca mais voltar.
foi há um ano que o meu avô morreu e o sacana continuo a ser eu.
:: a ilustração é da sofia sofias
June 1st, 2022 at 15:19
[…] a viagem, ligou-me o meu avô. estava internado no curry cabral, para fazer uns exames, por isso atendi, temendo que fosse alguma emergência. ele sabia que eu e a […]