Do alto do caos
Estava, fazia algum tempo, compenetrado no que fazia. Estava tão concentrado que demorou algum tempo a que a voz dela, na divisão ao lado, lhe interrompesse o trabalho.
Pousou a caneta e ficou apenas a ouvir. Estava alegremente a trocar mensagens de voz com a Sofia, a amiga com quem partilhava casa no Dubai e que estava a mais de seis mil quilómetros de distância, um hábito cada vez mais em voga e que ele nunca compreendera por completo.
Ficou, em silêncio, a ouvi-las pela porta semi-entreaberta. Não fora o que estavam a discutir que lhe chamara a atenção. Eram trivialidades da vida de quem partilha um espaço, ainda que separadas, momentaneamente, por milhares de quilómetros. Não. O que o cativara fora a voz da Sofia.
Era uma voz alegre e cheia de vida, contagiante até. Daquelas que faziam surgir o sol por detrás das nuvens num dia chuvoso, como nos filmes. Despertou-lhe a atenção e deixou-o curioso por associar uma cara àquela voz.
Comentou mais tarde o que sentira enquanto trocavam mensagens de voz e ela, depois de lhe falar da amiga, saiu-se com esta:
– Olha, acho que tu e a Sofia faziam um casal espectacular. Queres que ta apresente?
– Não, deixa lá, respondeu-lhe simplesmente.
Surpreendida pela resposta, porque ele não era nada assim, insistiu.
– Tens a certeza? Olha que ela é muito fixe e acho mesmo que vocês ficavam bem juntos.
Ele insistiu: A sério, não vale a pena.
– Mas porquê?
Suspirou ao responder-lhe: Com toda a franqueza, não estou onde esperava estar aos 30. E, do alto do caos em que a minha vida está, não vou arrastar ninguém para o meio desta confusão que ainda não consegui deslindar. Não seria justo.
Compreendeu o que ele quis dizer e anuiu silenciosamente, ao mesmo tempo que lhe dava um beijo na testa, orgulhosa ao perceber que, apesar de continuar meio perdido na vida, já não era o miúdo irresponsável que conhecera anos antes.
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