Critica por favor o meu elevado ego

18/06/2021

capítulo sétimo

manifesto — João Oliveira @ 03:43

o guilherme entretanto entrara no quarto, à procura do amigo, mas este não deu pela sua presença. o andré ainda segurava a pequena caixa negra de veludo entre as mãos quando se apercebeu de que o guilherme estava de pé, a seu lado, de olhar meio estarrecido, meio embaraçado, a olhar para ele.

– desculpa, puto, não queria mexer em nada – balbuciou apressadamente. – estava a tentar apanhar algumas coisas para arrumar e encontrei a caixa…

não sabia também o que dizer, porque acreditava que aquela situação não deveria ser fácil para o amigo, depois de tudo o que tinha passado nos últimos meses. por isso mesmo, também não quis fazer muitas perguntas e quis deixá-lo completamente à vontade.

o guilherme sentou-se, suspirou, e começou a desabafar com o amigo, como há muito não fazia e bem precisava.

– já nem me lembrava da existência desse anel… comprei-o meses antes de a sara ter acabado comigo. literalmente acabado comigo, não só com a nossa relação – começou, com um sorriso triste a desenhar-se na cara.

– tínhamos tido uma discussão feia, ao ponto de ela ter querido sair lá de casa, até já andava à procura de sítio onde ficar. não comprei o anel durante a discussão, foi algum tempo depois, quando as coisas já estavam a compor-se.

a minha ideia não era dar-lhe o anel como se fosse, de um momento para o outro, a solução para os nossos problemas, mas quando sentisse que era a altura certa. haveria de acontecer, o momento haveria de proporcionar-se, e seria quase como se fosse a renovação dos nossos votos, vá.

uma maneira de dizer-lhe: “sara, és tu com quem eu quero ficar o resto da minha vida e este anel é um símbolo do meu compromisso para contigo. vamos, por favor, não desistir de nós”. qualquer coisa deste género.

estas revelações deixaram o andré surpreendido. nunca imaginara que o guilherme encarasse a relação com a sara de uma maneira tão séria como aquela que estava agora a descobrir.

– eu queria muito casar com a sara, claro que queria casar com a sara. continuo a querer que ela seja a mãe dos meus filhos, a querer construir uma vida e um futuro juntos…

– tanto tempo depois? – interrompeu-o o andré.

– claro! acho que ela não consegue imaginar o quanto gosto dela, o quanto continuo a gostar dela, tanto tempo depois. sempre gostei e sempre a admirei, mais do que o que ela acreditava. mas, ao mesmo tempo que queria, e ainda quero, casar com a sara e ter filhos com ela, também sabia que ela ainda não estava ainda preparada para isso, mas que eventualmente iria lá chegar. não queria pressioná-la. mas chegámos a falar várias vezes sobre este assunto…

– daí aquela promessa que fizeste ao teu avô…

– exactamente, daí a promessa que fiz ao meu avô.

– então, mas porque é que nunca chegaste a dar-lhe o anel?

– nunca achei que tivesse chegado o momento certo para fazê-lo. hesitei durante muito tempo em dar-lhe o anel, tal como hesitei, por exemplo, quando aceitei o novo trabalho, mas na altura tinha a sara com quem falar sobre esse assunto… não podia falar com a sara sobre um anel que queria dar-lhe, não é?

a simplicidade com que o guilherme falava de uma coisa com uma carga emocional tão grande, de uma coisa que lhe era tão cara, não escondia a dor que continuava a sentir, tanto tempo depois.

– se hoje ainda estivéssemos juntos, ainda não a teria pedido em casamento, mas já lhe teria oferecido o anel. este anel não é um anel de noivado, longe disso. mas é um anel mesmo bonito, pá.

– mas também nunca te passou pela cabeça dar-lhe o anel ou enviá-lo pelo correio, sei lá?

– o anel esteve durante muito tempo guardado, ou escondido, em casa dos meus pais, sabes? precisamente para evitar cometer uma loucura dessas. ou, até, num momento de fúria, deitá-lo fora.

– por falar nisso, ia esperar pelo jantar para perguntar-te isto, mas como tens estado estes últimos tempos?

novo suspiro do guilherme e o sorriso a entristecer-lhe ainda mais a fronte.

– sobrevivi. tu não fazes ideia da quantidade de vezes em que peguei no carro, a meio da noite, e fui a conduzir até àquele spot onde aquele actor famoso se atirou ao mar. não imaginas a quantidade de vezes que isso me passou pela cabeça…

– mas porque é que não disseste nada? – o andré interrompeu-o, alarmado. – não ligaste, não mandaste uma mensagem? nós bem procurámos saber de ti…

– eu sei, andré, mas tu sabes como eu sou, eu não gosto de pedir ajuda e acho sempre que consigo resolver as coisas sozinho. e a verdade é que a situação piorou quando acabou a droga. álcool nunca faltou, mas a droga… é assustador os sítios sombrios para onde a tua mente divaga quando estás na merda, andré.

o andré estava lívido ao ouvir as palavras que saíam da boca do amigo. o guilherme acenou simplesmente, como que a dizer ao amigo para acreditar no que estava a contar-lhe, enquanto prosseguia a conversa.

– os que dizem por aí que quem se mata é cobarde, que escolhe a saída mais fácil… essa gente não faz ideia do ponto de desespero a que é preciso uma pessoa chegar para sequer contemplar fazê-lo. não faz ideia da enorme coragem que é precisa para acabar com a própria vida. eu sei o que essa gente estava a sentir quando o fez. e se hoje ainda aqui estou é porque eu é que sou o cobarde.

chegados a este ponto, a boca do guilherme estava completamente seca, enquanto os olhos marejavam e o amigo o olhava, boca semi-aberta, sem saber muito bem o que dizer-lhe.

[1][4][u]

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