e eu, especado, a olhar
um vazio profundo. observo o abismo em frente, em pensamentos absorto, e mal me apercebo que ele me fita de volta. a música não me entretém, quase me enfada, na verdade, porque falha a sua tarefa de fazer-me esquecer este marasmo que me rodeia, de transportar-me para lá de mim.
estalo os dedos, impaciente, um tique nervoso que não reúne consenso entre os que me dizem que devo fazê-lo e os que me rogam que o não faça, mas que não entendem que o seu único propósito mais não é do que aliviar a dor que se vai instalando em mim. esqueço-me que é também o corpo a pedir-me mais um cigarro, um pachorrento cigarro, que mais não faz do que adiar esta impaciência que não consigo, ou não quero, explicar.
já bebi café? levanto a cabeça do caderno onde faço estes rabiscos e conto duas chávenas entornadas sobre a mesa. também não seria a cafeína que iria fazer alguma coisa por mim hoje. o terceiro fica para depois.
deixo-me ficar a observar o abismo em frente e imagino como seria perder-me no seu abraço. sinto-o a chamar por mim, enquanto reflicto: não sei se tenho forças para recusar o seu chamamento. ou, sequer, a vontade.
o que tenho para fazer perde importância. o que me importa e interessa também não faço. não consigo.
abandono os rabiscos do caderno porque, apesar de habitual, nada do que escrevo sai como quero à primeira, o que contribui para a minha impaciência. não leio, porque as palavras não se fixam na minha mente, que permanece fixada no abismo em frente. tudo o que imagino na minha cabeça não concretizo e a impaciência leva-me a tentar estalar novamente os dedos, entre pachorrentos cigarros e chávenas de café engolidas num trago.
imagino-me a observar-me a mim próprio, de fora, enquanto fito perante mim o abismo que me chama. tudo o resto passa-me ao lado, indiferente, como o fumo que se esvai do cigarro que matei no café entornado ao meu lado.
e eu, especado, a olhar.